Agora bem, o que sabia Jó de tudo
isto? Nada. Como podia saber o que não foi revelado senão cinco séculos depois
dele? A medida do conhecimento de Jó se põe de manifesto ao ler as suas
veementes e comovedoras palavras ao final do capítulo 19: "Quem me
dera, agora, que as minhas palavras se escrevessem! Quem me dera que se
gravassem num livro! E que, com pena de ferro, e com chumbo, para sempre fossem
esculpidas na rocha! Porque eu sei que o meu Redentor vive e que, por fim, se
levantará sobre a terra. E, depois de consumida a minha pele,
ainda em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, e
os meus olhos, e não outros, o verão; e por isso, os meus rins se consomem
dentro de mim." (19:23-27). Este era o conhecimento de Jó seu credo.
Num sentido, o seu conhecimento era grande; mas, em comparação com o extenso e
proeminente círculo de verdades em meio ao qual temos o privilégio de sermos
introduzidos, é muito pequeno. Jó olhava para a frente, através de um
enfraquecido crepúsculo, para algo que havia de cumprir-se num porvir distante.
Nós, em cambio, desde o topo das águas da revelação divina, olhamos atrás, a
algo consumado. Jó pode dizer do seu Redentor que "por fim se levantará
sobre a terra". Nós sabemos que o nosso Redentor, depois de ter
vivido, trabalhado e morrido na terra, sentou-se à destra do trono da Majestade
nos céus. Em resumidas contas, a medida da luz e dos privilégios de Jó não
admite comparação com o que nós gozamos; e por isso nós temos menos escusas
para entregar-nos às diversas formas de egotismo ou de amor princípio que se
manifestam em nós. Nossa renuncia própria deve ir em proporção à medida dos
nossos privilégios espirituais. lamentavelmente, nem sempre é assim. Professamos
as mais elevadas verdades; mas elas não formam o nosso caráter nem governam a
nossa conduta. Falamos da nossa vocação celestial, mas os nossos caminhos são
terrenos e algumas vezes, carnais ou ainda piores. Professamos desfrutar a mais
alta posição; mas o nosso estado prático não é consoante com ela. A nossa
verdadeira condição não responde a nossa assumida posição. somos presumidos,
susceptíveis, teimosos e facilmente irritáveis. Somos tão propensos a
embarcar-nos na empresa da justificação própria como o nosso patriarca Jó. Por
outra parte, quando nos sentimos obrigados a dirigir-nos a alguém em atitude e
tom de repreensão, com quanto rudeza, brutalidade e aspereza desempenhamos esta
necessária tarefa! Que pouco tato e que pouca suavidade no tom! Quanto falta de
doçura e de ternura! Que pouca bondade, que pouco de esse "bálsamo
excelente" (Salmo 141:5). Que difícil é achar entre nós corações
quebrantados e olhos chorosos! Que miserável capacidade para conduzir o nosso
irmão extraviado a curvar a testa e a humilhar-se! A que se deve? Simplesmente
a que nós mesmos não cultivamos o hábito de curvar a nossa testa e de
humilhar-nos. Se, por um lado, permitimos, como Jó, dar liberdade ao nosso
egotismo e a nossa própria justificação, seremos, por outro lado, tão incapazes
como os seus amigos de provocar em nosso irmão o juízo de si mesmo. Quão
freqüentemente fazemos alarde da nossa experiência, como Elifaz; ou gostamos de
um espírito legalista, como Zofar; ou introduzimos a autoridade humana, como
Bildade! Quão pouco se vê em nós o espírito e a mente de Cristo! Quão pouco se
vê o poder do Espírito Santo ou a autoridade da Palavra de Deus! Não é nada
agradável escrever estas coisas. Ao contrário. Mas sentimos que é o nosso dever
fazê-lo. Nos aflige sobremaneira ver e isto com a maior solenidade a crescente
frivolidade e indiferença da época em que vivemos. Nada é mais aterrador que a
desproporção entre a nossa profissão e a nossa prática. Se professam as mais
elevadas verdades em relação imediata com uma mundanalidade e uma licencia
grosseiras. Em alguns casos, pareceria como se o caminhar fosse ainda mais
baixo quanto mais elevadas são as doutrinas professadas. Vemos em meio de nós
uma extensa difusão da verdade, mas, onde está o seu poder formativo? Torrentes
de luz derramam na inteligência, porém, onde estão os profundos exercícios de
coração e de consciência na presença de Deus? A regra de apresentar a verdade
de maneira precisa e exata se cumpre com extremo rigor, mas, onde estão os
resultados práticos? Desenvolve-se a sã doutrina segundo a letra, mas, onde
está o espírito? Vemos a forma das palavras, mas, onde está a representação
vivente? Queremos dizer com isto que não apreciamos a sã doutrina? Queremos
dizer que subestimamos a ampla difusão das preciosas verdades da Palavra em
suas formas mais elevadas? Longe, longe de nós esse pensamento! A linguagem
humana seria insuficiente para expressar a nossa estima por estas coisas. Que
Deus nos guarde de escrever um última linha que pudesse de alguma forma fazer minguar
na mente do leitor o inefável valor e a importância de manter uma elevadíssima em
rigor, a mais elevada norma de verdade, tanto quanto uma Sua doutrina. Estamos
plenamente persuadidos de que jamais melhoraremos a nossa conduta rebaixando embora
fosse só pela grossura de um cabelo a medida dos princípios de Deus. Más,
querido leitor, lhe perguntamos com amor e solenidade: não lhe aflige o fato de
que em meio de nós exista tão trágica ausência de consciências delicadas e de
corações exercitados? Marcha parelha a nossa piedade prática com a profissão
dos nossos princípios? Está a medida de nossa conduta prática a mesma altura
que a medida da doutrina que professamos? Ai, prevemos a resposta do leitor
sério e reflexivo! Sabemos muito bem os termos em que ela haverá de ser
expressada. Fica claro que a verdade não atua em nossas consciências como seria
de esperar, que a doutrina não brilha em nossas vidas e que a prática não está
a tom com a nossa profissão. Falamos por e para nós. Escrevemos estas linhas
num espírito de juízo próprio; na mesma presença de Deus, já que Deus é a nossa
testemunha. É nosso ardente desejo que a espada da verdade penetre em nossa
própria alma e chegue até as mais profundas raízes ocultas dela. O Senhor sabe
o muito que é preferível dar uma machadada à raiz do eu e deixar que
faça o seu trabalho. Sentimos que temos um sagrado dever a cumprir para com o
leitor, assim também como para com a igreja de Deus; mas também sentimos que
esse dever não poderia ser plenamente cumprido se apresentássemos meramente
todo o que há de precioso, todo o que há de formoso e todo o que há de puro.
Estamos convencidos de que Deus não só quer que a voz da advertência afete em
nossos corações e consciências, senão que também procuremos exercitar os corações
e as consciências de todos aqueles com quem nos relacionamos. É verdade que
coisas tais como a mundanalidade, a carnalidade, o relaxamento em todas as
facetas da vida cotidiana —no clube, na biblioteca, em casa, na igreja, etc, a
moda e o estilo de vestir, a vaidade e a insensatez, o orgulho de casta, de
talento ou de intelecto e de riqueza, não podem tratar-se cabalmente. Nenhuma
destas coisas bem sabemos, por certo podem escrever-se, expor-se ou
censurar-se de forma aberta e acabada. Mas, acaso não podemos apelar à
consciência? Acaso a voz da santa exortação não deve alcançar os ouvidos de
todos nós? Como poderíamos tolerar a relaxação, a indiferença e a tibieza
laodiceana preparando assim o caminho para o ceticismo universal, a
infidelidade e o ateísmo prático, sem acordar a nossa consciência nem tratar de
acordar a dos outros? Deus nos livre disso! Sem dúvida, o caminho mais elevado
e excelente é que o mal seja sepultado pelo bem, a carne subjugada pelo
Espírito, o eu deslocado por Cristo e o amor do mundo suprido pelo do
Pai. Tudo isso o cremos plenamente e o admitimos com inteira liberdade; mas,
com tudo, devemos ainda assim urgir nas nossas consciências e na do leitor a
necessidade de submeter-nos, com respeito a toda a nossa carreira, a um solene
e escrutinador exame de coração; a um profundo julgamento de nós mesmos.
Bendito seja Deus, podemos levar a cabo estes exercícios diante do trono da
graça, diante do precioso propiciatório! "A graça reina" (Romanos
5:21). Que preciosa e consoladora verdade! Poderia ela enfraquecer o valor do
julgamento de nós mesmos? De maneira nenhuma! Ela só poderia infundir em nós o
tom e o caráter corretos para este necessário exercício da alma. Nós temos que
ver com a graça triunfante; isto é precisamente o que nos ensina a não dar
liberdade ao eu, senão a mortificá-lo inteiramente. Queira o Senhor nos
fazer realmente humildes, zelosos e devotos! Que a expressão íntima do nosso
coração seja: "Senhor, sou teu, somente teu, todo teu, teu por
sempre". Isto pode parecer a alguns uma digressão do nosso tema principal;
mas confiamos que esta pequena divagação que nos temos permitido não seja em
vão, senão que, pela graça de Deus, deixe algum proveito ao coração e à
consciência do escritor e do leitor; e assim estaremos melhor preparados para
entender e apreciar o poderoso ministério de Eliú, ao qual dirigiremos agora a
nossa atenção, confiando-nos à guia de Deus. O leitor não pode deixar de
advertir o duplo efeito que produz este notável ministério: o seu efeito sobre
nosso patriarca e o seu efeito sobre os seus amigos. Não podia se
esperar outra coisa. Eliú, como já fizemos notar, havia escutado pacientemente
os argumentos esgrimidos por ambas partes. Ele tinha deixado, por assim dizer,
que falassem até o cansaço, que dissessem tudo o que tinham para se dizer: "Eliú,
porém, esperou para falar a Jó, porquanto tinham mais idade do que ele"
(32:4). Isto se encontra numa bonita ordem moral. Com certeza, era o caminho do
Espírito de Deus. A modéstia é um ornamento que cai bem a um jovem. Tomara que
abundasse mais em meio de nós! Quando a verdadeira dignidade jaz oculta debaixo
de um manto de modéstia e humildade, ela com certeza atrairá os corações com
uma força irresistível. Ao contrario, nada é mais repulsivo que a temerária confiança
em si mesmo, o denodado atrevimento e a arrogância de muitos jovens de hoje
dia. Bom seria que estes jovens considerassem as palavras introdutórias de
Eliú, e imitassem seu exemplo.
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