Porém, o repetimos com ênfase: Deus
quer vasos vazios. Nos ama demasiadamente para nos deixar em nossa
dureza e teimosia, e por isso estima conveniente nos fazer passar através de
todo tipo de exercícios a fim de nos trazer a um estado da alma em que possa
nos utilizar para a Sua glória. É necessário que a vontade seja quebrantada,
que a confiança própria, a auto-satisfação e o orgulho sejam arrancados de
raiz. Deus se valerá das cenas e circunstâncias pelas que temos que passar,
assim como das pessoas com que nos relacionamos na vida diária, a fim de
disciplinar o nosso coração e quebrantar a nossa vontade. E, além disso, Ele
mesmo tratará diretamente com nós a fim de conseguir estes formidáveis
resultados práticos. Tudo isto revela-se com grande claridade no livro de Jó,
tornando suas páginas sumamente atrativas e frutíferas. É muito evidente que Jó
precisava ser fortemente chacoalhado. Podemos estar seguros de que se isso não
tivesse sido necessário, o Deus da graça e da bondade não o teria feito passar
por provações semelhantes. Sem dúvida, não foi sem um propósito que Deus
permitiu a Satanás disparar suas mortíferas flechas sobre seu amado servo.
Podemos afirmar, com absoluta certeza, que Deus não teria procedido desse jeito
se o estado de Jó não o houvesse necessitado. Deus amava a Jó com um amor
perfeito; mas tratava-se de um amor sábio e fiel, um amor que tinha em conta
todos os detalhes da vida, e que podia penetrar no coração de este amado servo
de Deus, e descobrir uma profunda e maligna raiz moral que Jó jamais tinha
visto nem julgado. Que graça é ter que ver com semelhante Deus! Que graça é
estar nas mãos de Aquele que não evita esforços quando tem que submeter em nós
tudo quanto seja contrário a Ele, e lavrar Sua bendita imagem em nós! Mas,
querido leitor, não há algo profundamente interessante no fato de que Deus pode
até se servir de Satanás como instrumento para a disciplina do sem povo? Vemos
isto na vida do apóstolo Pedro, mesmo que na do patriarca Jó. Pedro tinha que
ser cirandado, e Satanás foi utilizado para cumprir essa tarefa: "Simão,
Simão, eis que Satanás vos pediu para vos cirandar como trigo" (Lucas
22:31). Ali também havia uma necessidade imperiosa. Havia uma raiz profunda no
coração de Pedro que devia ser descoberta: a raiz da confiança em si mesmo. E
seu fiel Senhor considerou absolutamente necessário fazê-lo passar através de
um processo severo e doloroso, a fim de que essa raiz fosse trazida à luz e
julgada. Por isso se lhe permitiu a Satanás cirandar a Pedro para que se
conduzisse com prudência todos os dias de sua vida, e jamais voltasse a confiar
no próprio coração. Deus quer vasos vazios, já seja se trate de um
patriarca ou de um apóstolo. Tudo, no homem, tem que ser abrandado e subjugado
a fim de que a glória divina resplandeça nele com um brilho inextinguível. Se
Jó tivesse conhecido este grande princípio, se tivesse captado o objetivo
divino, quão diferentemente teria se conduzido! Mas ele como nós devia aprender
a sua lição; e o Espírito Santo, no texto inspirado, nos relata a maneira em
que Jó aprendeu essa lição, para que assim também nós possamos tirar proveito
dela. Continuemos a ler o relato. "E vindo um dia em que os filhos de
Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio, também, Satanás entre eles.
Então o Senhor disse a Satanás: Donde vens? E Satanás respondeu ao Senhor, e
disse: De rodear a terra, e passear por ela. E disse o Senhor a Satanás:
Observaste tu o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele,
homem sincero e reto, temente a Deus e desviando-se do mal. Então respondeu
Satanás ao Senhor, e disse: Porventura teme Jó a Deus debalde? Porventura não o
cercaste tu de bens, a ele, e a sua casa, e a tudo quanto tem? A obra das suas
mãos abençoaste e o seu gado está aumentado na terra. Mas estende a tua mão, e
toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema de ti na tua face!" (1:6-11).
Que cena temos aqui, da malícia de Satanás! Que extraordinária testemunha da
maneira em que Ele vigia e considera os caminhos e as obras do povo de Deus!
Quão perfeitamente conhece o caráter humano! Que íntimo conhecimento possui da
mente e do estado moral do homem! Que coisa terrível cair em suas mãos! Ele
está sempre vigiando, sempre pronto se Deus o permitir a empregar todo o seu
maligno poder contra os cristãos. Que solene é pensar em tudo isto! Deveria
induzir-nos a seguir uma senda humilde e alerta, no meio da cena onde Satanás
pratica o seu domínio! Esse encontra-se absolutamente impotente frente a uma
alma que permanece na dependência e obediência; e bendito seja Deus, Satanás
não pode, em caso nenhum, traspassar o limite traçado por prescrição divina.
Assim aconteceu com Jó: "E disse o Senhor a Satanás: Eis que tudo
quanto tem está na tua mão; somente contra ele não estendas a tua mão. E
Satanás saiu da presença do Senhor" (1:12). Aqui, pois, é permitido a
Satanás estender a sua mão sobre as possessões de Jó, lhe arrebatar os filhos e
despojá-lo de todas as suas riquezas. E certamente ele não perdeu um instante
para realizar a sua obra. Com notável velocidade cumpriu a sua missão. Um golpe
trás outra caia sucessivamente sobre a cabeça do devoto patriarca. Apenas um
dos seus mensageiros pode lhe transmitir a sua triste notícia, e em seguida
aparece um outro com uma novidade ainda mais terrível, até que por fim o
afligido servo de Deus "se levantou, e rasgou o seu manto, e rapou a
sua cabeça, e se lançou em terra, e adorou, E disse: Nu saí do ventre de minha
mãe, e nu tornarei para lá; o Senhor o deu, e o Senhor o tomou; bendito seja o
nome do Senhor. Em tudo isto, Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta
alguma." (1:20-22). Tudo isto é profundamente comovente. Ser privado
num instante dos seus dez filhos e logo reduzido das riquezas principescas à
penúria absoluta, era, humanamente falando, motivo suficiente para cambalear.
Que notável contrate entre as primeiras e as últimas linhas do primeiro
capítulo! Ao princípio, vemos a Jó rodeado de uma numerosa família, e
desfrutando das suas muitas possessões; enquanto que, ao último, o vemos
abandonado, sumido na pobreza e a nudez. E pensar que foi Satanás quem com a
permissão e, ainda mais, com o pedido de Deus o tinha reduzido a tal estado! Y
para que foi feito tudo isto? Para o proveito permanente e profundo da preciosa
alma de Jó. Deus via que o seu servo necessitava aprender uma lição; e
considerava, além disso, que tal lição só poderia ser ensinada fazendo passar a
Jó por uma prova penosa por um verdadeiro tormento, cuja simples menção cheia a
mente de solene temor. Deus não deixará de ensinar a Seus filhos, ainda que
tivesse que despojá-los de tudo ao que o coração se afeiçoa neste mundo! Mas
devemos seguir ao nosso patriarca em águas ainda mais profundas. "E, vindo outro dia em que os filhos
de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio, também, Satanás entre eles
apresentar-se perante o Senhor. Então o Senhor disse a Satanás: De onde vens? E
respondeu Satanás ao Senhor, e disse: De rodear a terra, e passear por ela. E
disse o Senhor a Satanás: Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra
semelhante a ele, homem sincero e reto, temente a Deus, e desviando-se do mal,
e que ainda retém a sua sinceridade, havendo-me tu incitado contra ele, para o
consumir sem causa. Então Satanás respondeu ao Senhor, e disse: Pele por pele,
e tudo quanto o homem tem dará pela sua vida. Estende, porém, a tua mão, e
toca-lhe nos ossos, e na carne, e verás se não blasfema de ti na tua face! E disse
o Senhor a Satanás: Eis que ele está na tua mão; poupa, porém, a sua vida.
Então saiu Satanás da presença do Senhor, e feriu a Jó de uma chaga maligna,
desde a planta do pé até ao alto da cabeça. E Jó, tomando um pedaço de telha
para raspar com ele as feridas, assentou-se no meio da cinza. Então sua mulher
lhe disse: Ainda reténs a tua sinceridade? amaldiçoa a Deus, e morre. Mas ele
lhe disse: Como fala qualquer doida, assim falas tu; receberemos o bem de Deus,
e não receberíamos o mal? Em tudo isto, não pecou Jó com os seus lábios."
(2:1-10). Esta é uma passagem muito
notável. Nos instrui acerca do lugar que ocupa Satanás a respeito do governo de
Deus. Ele não é mais do que um instrumento; e, embora esteja sempre pronto para
acusar ao povo de Deus, não pode fazer nada, senão só o que Deus lhe permite.
Seus esforços, no que a Jó se refere, viram-se frustrados e, trás esgotar seus
últimos recursos, desaparece, e não ouvimos nada mais acerca das suas manobras
no resto do livro, quaisquer pudessem ter sido as suas intenções. Jó deu
mostras de que pode guardar a sua integridade; e, se as coisas tivessem acabado
aqui, a sua paciência nos sofrimentos não teria feito outra coisa senão firmar
ainda mais as raízes de sua própria justiça e alimentar a sua auto-satisfação.
"Ouvistes" diz Tiago "qual foi a paciência de Jó, e vistes o
fim que o Senhor lhe deu; porque o Senhor é muito misericordioso e
piedoso" (Tiago 5:11). Se tivesse se tratado simplesmente de uma
questão da paciência de Jó, ele teria conseguido assim mais motivos para seguir
confiando em si mesmo, e o "fim do Senhor" não teria sido alcançado.
Pois e não esqueçamos nunca a misericórdia e a compaixão do Senhor só podem ser
gostadas por aqueles de espírito contrito e coração quebrantado. Agora bem, Jó
não podia ser contado entre estes, por muito que estivesse sentado no meio das
cinzas. Ele ainda não havia quebrado por completo sua cerviz diante de Deus.
Ainda era o grande homem tão grande nos seus infortúnios quanto o fora
em tempos da prosperidade; tão grande sob os ventos violentos e erosivos da
adversidade quanto era sob o sol radiante dos seus melhores e mais
esplendorosos dias. O coração de Jó ainda não tinha sido alcançado. Não estava
ainda preparado para exclamar : "Eis que sou vil" (40:4), nem
havia todavia aprendido a dizer: "Por isso, me abomino e me arrependo
no pó e na cinza" (42:6). Estamos ansiosos de que o leitor capte com
claridade este ponto. Constitui, em grande parte, a clave de todo o livro de
Jó. O objetivo divino era expor aos olhos de Jó as profundezas do seu próprio
coração, a fim de que aprendesse a se deleitar na graça e na misericórdia de
Deus; todas as acusações de Satanás se desmoronaram em sua própria cara; porém,
Jó continuava sem ser um vaso vazio, e por tanto, não estava preparado
para "o fim do Senhor", esse fim bendito para todo coração contrito,
um fim caracterizado pela misericórdia e a compaixão. Deus bendito seja o Seu
Nome não tolerará que Satanás nos acuse; mas Ele quer nos fazer ver o que há em
nosso coração, a fim de que nos julguemos a nós mesmos e aprendamos a
desconfiar dos nossos próprios corações e a repousar na inquebrantável firmeza
de sua graça. Por enquanto, vemos que Jó "retêm a sua integridade".
Enfrenta com calma as terríveis aflições que Satanás lhe causou com a permissão
de Deus; e além disso, rejeita o insensato conselho de sua mulher. Em uma
palavra, aceita todo como proveniente da mão de Deus, e inclina a sua cabeça
ante Suas misteriosas dispensações. Tudo isto sem dúvida era bom. Porém, a
chegada dos três amigos de Jó provoca uma mudança notável. A sua simples
presença, o mero fato de serem testemunhas oculares de sua miséria, influiu
nele de uma maneira surpreendente. "Ouvindo, pois, três amigos de Jó,
todo este mal que tinha vindo sobre ele, vieram cada um do seu lugar: Elifaz, o
temanita, e Bildade, o suíta, e Sofar, o naamatita; e concertaram juntamente
virem condoer-se dele, e consolá-lo. E, levantando de longe os seus olhos e não
o conhecendo, levantaram a sua voz e choraram; e rasgando cada um o seu manto,
sobre as suas cabeças lançaram pó ao ar. E se assentaram juntamente com ele na
terra, sete dias e sete noites; e nenhum lhe dizia palavra alguma, porque viam
que a dor era muito grande." (2:11-13). Bem podemos crer que estes
três homens estavam motivados, ante todo, por bons sentimentos para com Jó; e
não lhes foi um grande sacrifício ter que deixar seus lares para vir a
condoer-se do seu afligido amigo. Tudo isto podemos compreendê-lo sem maior
dificuldade. Mas é evidente que sua presença teve o efeito de despertar no
coração de Jó sentimentos e pensamentos que até então tinham permanecido
adormecidos. Ele tinha suportado com resignação a perda dos seus filhos, dos
seus bens e de sua saúde. Satanás tinha sido repelido, e o conselho de sua
mulher, rejeitado. Mas a presença de seus amigos abateu por completo o espírito
de Jó. "Depois disto, abriu Jó a sua boca, e amaldiçoou o seu
dia." (3:1).
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