Isto é muito notável. Seus amigos,
pelo visto, não haviam proferido uma única palavra. Sentaram em absoluto
silêncio, com suas vestes rasgadas e suas cabeças cobertas de cinzas,
contemplando uma aflição tão profunda que era impossível de sondar. Jó mesmo foi
quem rompeu o silêncio. Todo o terceiro capítulo consiste em um desabafo de
seus amargos lamentos, evidenciando assim, tristemente, um espírito indômito.
podemos dizer com certeza que é impossível que alguém que haja aprendido a
dizer em alguma medida "seja feita a Tua vontade", possa alguma vez
amaldiçoar o dia em que nasceu ou empregar a linguagem que vemos no terceiro
capítulo do nosso livro. Sem dúvida, alguém pode dizer: "é fácil falar
quando nunca nos tocou ter que suportar as terríveis provas de Jó". Isto é
muito certo, e podemos agregar que nenhum outro homem haveria agido melhor em
circunstâncias semelhantes. Tudo isto compreendemos perfeitamente; mas não muda
em absoluto o grande ensino moral do livro de Jó, ensino que temos o privilégio
de aprender. Jó era um verdadeiro santo de Deus; mas ele —como todos nós—
necessitava conhecer a si mesmo. Precisava que as raízes ocultas do seu ser
moral fossem descobertas ante seus próprios olhos, de modo que pudesse
verdadeiramente aborrecer-se e arrepender-se no pó e nas cinzas. E necessitava,
também, ter uma percepção mais profunda e verdadeira do que Deus era, para
assim poder confiar nEle e justificá-Lo em todas as circunstâncias. Todas estas
coisas, porém, as buscaremos em vão no primeiro discurso de Jó. "E Jó,
falando, disse: Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse: Foi
concebido um homem! (...) Por que não morri eu desde a madre, e, em saindo do
ventre, não expirei?" (3:2-3,11). Estes não são os pontos de um
espírito contrito e quebrantado, nem de alguém que tem aprendido a dizer: "Sim,
ó Pai, porque assim te aprouve" (Mateus 11:26). Se há alcançado um
importante ponto na história da alma quando se és capaz de inclinar mansamente
ante todas as dispensações da mão de nosso Pai. Uma vontade quebrantada é um
dom precioso e extraordinário. Tem se alcançado um grau elevado na escola de
Cristo quando se és capaz de dizer: "já aprendi a contentar-me com o
que tenho" (Filipenses 4:11). Paulo teve que aprender isto. Não era
conforme à sua natureza; e com certeza jamais o teria aprendido aos pés de
Gamaliel. Teve que quebrar-se por completo aos pés de Jesus de Nazaré antes de
conseguir dizer desde o fundo do coração: "estou contente". Teve que
sopesar o significado destas palavras: "A minha graça te basta",
antes de poder "se aperfeiçoar na fraqueza" (2 Coríntios
12:9). O homem que foi capaz de empregar esta linguagem é o antípoda do que
pode amaldiçoar o dia em que nasceu, e exclamar: "pereça o dia em que
nasci". Pense só num santo de Deus, num herdeiro da glória, dizendo: "pereça
o dia em que nasci". Ah, se Jó tivesse estado em presença de Deus,
nunca teria pronunciado palavras semelhantes! Teria sabido perfeitamente bem
por que havia ficado com vida. Haveria um sentido claro e satisfatório para a
sua alma do que Deus tinha reservado para ele. Haveria justificado a Deus em
todas as coisas. Mas Jó não se encontrava na presença de Deus, senão na dos
seus amigos, os quais demonstraram claramente ter pouco —ou nenhum—conhecimento
do caráter de Deus e do verdadeiro objetivo dos Seus desígnios para com o Seu
querido servo Jó.
Discursos dos amigos
de Jó
Não é de nenhuma forma o nosso
propósito realizar uma exame minuciosa das extensas discussões que se sucederam
entre Jó e seus amigos, discussões que abarcam mais de 29 capítulos. Só
citaremos alguns fragmentos dos discursos dos três amigos, o que possibilitará
ao leitor formar-se uma idéia do verdadeiro terreno em que estes homens estavam
errados.
Elifaz e a
experiência
Elifaz é o primeiro em tomar a
palavra. "Então respondeu Elifaz, o temanita, e disse: Se intentarmos
falar-te, enfadar-te-ás? Mas quem poderá conter as palavras? Eis que ensinaste
a muitos, e esforçaste as mãos fracas. As tuas palavras levantaram os que
tropeçavam, e os joelhos desfalecentes fortificaste. Mas agora a ti te vem, e
te enfadas; e, tocando-te a ti, te perturbas. Porventura não era o teu temor de
Deus a tua confiança, e a tua esperança a sinceridade dos teus caminhos?
Lembra-te agora de qual é o inocente que jamais perecesse? E onde foram os
sinceros destruídos? Segundo eu tenho visto, os que lavram iniqüidade e semeiam
o mal segam isso mesmo" (4:1-8). Assim também: "Bem vi eu o
louco lançar raízes; mas logo amaldiçoei a sua habitação" (5:3). E
também: "Eis que bem-aventurado é o homem a quem Deus castiga; não
desprezes, pois, o castigo do Todo-Poderoso" (5:17). A partir destas
declarações resulta evidente que Elifaz pertencia a essa classe de gente que
gosta de argüir se baseando na própria experiência. Seu ditado era: "Eu
vi". Agora bem, é possível que o que hajamos "visto",
seja o que for, seja absolutamente verdadeiro. Mas é um erro terrível fazer da
nossa experiência individual uma regra geral; porém, milhares têm esta
inclinação. O que tinha a ver, por exemplo, a experiência de Elifaz com a
situação de Jó? Talvez ele jamais se encontrou com um outro caso exatamente
igual ao de Jó; e embora houvesse existido um único rasgo de disparidade entre
os dois casos, toda a argumentação baseada na experiência de um deles não teria
sido de utilidade alguma para o outro. E isto fica claro no acontecido a Jó:
assim que Elifaz acabou de falar, Jó —quem não lhe havia prestado a menor
atenção—, prosseguiu falando das próprias aflições, intercalando palavras de
justificação própria e amargas recriminações contra os desígnios de Deus (cap.
6 e 7).
Bildade e a
tradição
Bildade é o segundo a falar. Ele se
instala sobre um terreno completamente diferente daquele do seu amigo. Não
menciona nem uma vez só as suas experiências, nem o que fosse resultado da sua
própria observação. Apela à antiguidade. "Porque, eu te peço,
pergunta agora às gerações passadas, e prepara-te para a inquirição de seus
pais. Porque nós somos de ontem, e nada sabemos; porquanto os nossos dias sobre
a terra são como a sombra. Porventura não te ensinarão eles, e não te falarão,
e do seu coração não tirarão razões?" (8:8-10). Agora bem, devemos
admitir que Bildade nos conduz a um campo muito mais vasto que aquele de
Elifaz. A autoridade de uma multidão de "padres" tem muito mais peso e
respeitabilidade que a experiência de um simples indivíduo. Por outra parte, se
deixar conduzir pela voz de uma multidão de homens sábios e eruditos parece
muito mais modesto que fazê-lo à luz da experiência de um só deles. Mas o
assunto é que nem a experiência nem a tradição servirão de nada.
A primeira, até onde chega, pode ser verdadeira; mas dificilmente acharemos
duas pessoas cujas experiências coincidam de maneira perfeita. Referente à
segunda, é uma profusa confusão; pois um difere doutro, e nada pode ser mais
volúvel e incerto do que a voz da tradição ou a autoridade dos pais. Em
conseqüência, como era de se esperar, as palavras de Bildade não afetaram mais
a Jó do que as de Elifaz. Um estava tão longe da verdade quanto o outro. Se
eles tivessem apelado à revelação divina, quão diferentes teriam sido os
resultados! A verdade de Deus é a única regra, a única grande
autoridade. É segundo a sua medida que todo deve ser medido; e todos, antes ou
depois, deverão inclinar-se sob a sua autoridade. Ninguém tem o direito de
estabelecer a sua experiência como regra para os outros. E se nenhum homem tem
este direito, também não o tem uma multidão de homens. Em outras palavras, é a
voz de Deus —não a voz do homem— a que nos deve governar. Nem a experiência nem
a tradição, senão a Palavra de Deus sozinha é a que pronunciará o juízo no
último dia. Fato solene e importante! Não o percamos nunca de vista! Se Bildade
e Elifaz tivessem discernido isto, as suas palavras teriam exercido muita mais
influência no seu afligido amigo.
Zofar e a
legalidade
Consideremos agora brevemente a
primeira parte do discurso de Zofar, o naamatita: "Mas, na verdade,
oxalá que Deus falasse e abrisse os seus lábios contra ti, E te fizesse saber
os segredos da sabedoria, que é multíplice em eficácia; pelo que, sabe que Deus
exige de ti menos do que merece a tua iniqüidade" (11:5-6). "Ainda
que ele me mate, nele esperarei; contudo, os meus caminhos defenderei diante
dele" (13:15). Estas palavras têm um forte gosto a legalidade.
Mostram claramente que Zofar não tinha um sentido justo do caráter de Deus. Não
conhecia a Deus. Nenhum que possua o verdadeiro conhecimento de Deus poderia
falar dEle como de alguém que abre a boca contra o pobre pecador afligido ou
que exige algo de uma criatura desvalida e necessitada. Deus bendito seja Seu
Nome por sempre— não é contra nós, senão por nós (Romanos 8: 31).
Ele não é um cobrador ou um demandante legal, senão um generoso doador.
Observemos nos últimos versículos que limos; Zofar diz: "Se tu
preparaste o teu coração" (11:13). Agora bem, que aconteceria se Jó
não tivesse preparado o seu coração? É verdade que um homem deveria ter sempre
disposto o seu coração; mas isso não será possível em tanto e enquanto o seu
estado moral seja bom. Jó, lamentavelmente, não se encontrava num bom estado,
pelo que, quando tenta dispor seu coração, não acha nele outra coisa senão
iniqüidade. Então, o que deveria fazer ele? Zofar não podia lhe dizer —como
também não podiam nenhum dos outros da sua escola—. Eles somente conheciam a
Deus como um severo opressor, como alguém que só abre a sua boca para falar
contra o pecador. Haveremos, pois, de assombrar-nos de que Zofar estivesse tão
longe de redargüir a Jó quanto os seus dois companheiros? Todos eles estavam
completamente errados. A tradição, a experiência e a legalidade
são todas igualmente defeituosas, limitadas e falsas. Nenhuma desta três coisas
—nem as três juntas— poderiam ter sido uma ajuda para Jó. Elas só "escurece(m)
o conselho, com palavras sem conhecimento" (38:2). Nenhum dos três
amigos compreendeu a Jó; ainda mais, eles não conheciam o caráter de Deus nem o
seu propósito a respeito da prova do servo. Estavam completamente errados. Não
sabiam como apresentar a Deus ante Jó e, conseqüentemente, também não souberam levar
a consciência do seu amigo à presença mesma de Deus. Em vez de conduzi-lo ao
julgamento de si mesmo, só contribuíram a sua própria justificação. Não
introduziram a Deus em suas conversas. Falaram algumas coisas verdadeiras,
mais não possuíam a verdade. Trouxeram à luz as suas experiências, a sua
tradição e a sua legalidade, mas não expuseram a verdade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
FAÇA TEU COMENTARIO OU PEÇA PARA COLOCARMOS O ESTUDO QUE DESEJAS. DEUS VOS ABENÇOE.