Agora bem, Jó tinha que se despojar
de tudo isto; e, se comparamos o capítulo 29 com o capítulo 30, poderemos
formar-nos uma idéia do penoso que deve ter sido o processo deste despojamento.
Existe uma ênfase particular nestas palavras: "Mas agora", no
inicio do capítulo 30. Jó traça, entre estes dois capítulos, um agudo contraste
entre seu passado e seu presente. No capítulo 30 ele se encontra ainda ocupado
em si mesmo: ainda é o eu quem predomina; mas, ah, quão mudado está
tudo! Os mesmos homens que o elogiavam nos dias de sua prosperidade, o tratam
com desprezo no tempo de sua adversidade. Sempre é assim neste pobre mundo,
falso e enganoso; e bom é advertimos isso. Todos, antes ou depois, terminarão
descobrindo a hipocrisia deste mundo; a veleidade daqueles que estão prestes a
exclamar um dia "Hosanna!", e no seguinte dia:
"Crucifica-o!". não se deve confiar neste homem. Tudo marcha
perfeitamente bem enquanto o sol brilha; aguardemos, porém, que cheguem as
geladas do inverso, e vejamos então até onde podemos confiar nas
impressionantes promessas e declarações da natureza. Enquanto o "filho
pródigo" teve bens em abundância para dilapidar, houve multidões de
amigos para compartilhar as suas riquezas; mas quando começou a padecer
necessidade, "ninguém lhe dava (nada)" (Lucas 15:16). O mesmo
aconteceu com Jó no capítulo 30. porém, temos que levar em conta que o
despojamento de si mesmo e o descobrimento da hipocrisia e a veleidade do mundo
não é tudo. A gente pode experimentar todas estas coisas e não achar finalmente
senão problemas e desilusões; e esse será o resultado se não elevamos o nosso
olhar a Deus. enquanto o coração não encontre em Deus a sua plena satisfação,
qualquer mudança adversa de circunstâncias nos deixará submersos na desolação;
então, o descobrimento da veleidade e hipocrisia dos homens nos encherá de
amargura. Esta é a explicação pela linguagem que Jó utiliza no capítulo 30: "Mas,
agora, se riem de mim os de menos idade do que eu, e cujos pais eu teria
desdenhado de pôr com os cães do meu rebanho" (30:1). Era este o
espírito de Cristo? Teria falado assim Jó ao final do livro? Certamente que
não; oh, não, querido leitor! Uma vez que Jó se encontrou em presença de Deus,
terminaram o egotismo do capítulo 29 e a amargura do capítulo 30. Porém,
ouçamos ainda mais expressões de desafogo: "Eram filhos de doidos, e
filhos de gente sem nome, e da terra eram expulsos. Mas, agora, sou a sua
canção, e lhes sirvo de provérbio. Abominam-me, e fogem para longe de mim, e no
meu rosto não se privam de cuspir. Porque Deus desatou a sua corda e me
oprimiu; pelo que, sacudiram de si o freio perante o meu rosto. À direita, se
levantam os moços; empurram os meus pés, e preparam contra mim os seus caminhos
de destruição. Desbaratam-me o meu caminho; promovem a minha miséria; uma gente
que não tem nenhum ajudador. Vêm contra mim como por uma grande brecha, e
revolvem-se entre a assolação" (30:8-14). Agora bem, tudo isto bem
podemos dizer estava muito, mas muito longe do alvo. Lamentações por uma
grandeza desvanecida e amargas invectivas contra nossos semelhantes não
servirão de nada para o coração, nem manifestam para nada o espírito e a mente
de Cristo; assim como também não glorificarão seu santo Nome. Se contemplarmos
a bendita pessoa do Senhor, veremos algo completamente diferente: o Senhor
Jesus, "manso e humilde de coração", recebe todo o desprezo do
mundo, sofre o desengano em meio do seu povo Israel e se encontra com a
incredulidade e os desatinos dos seus discípulos. Tudo isto Jesus assumiu
dizendo simplesmente: "Sim, ó Pai, porque assim te aprouve"
(Mateus 11:26). Ele foi capaz de se apartar de toda a agitação dos homens e
olhar simplesmente a Deus, para proferir então estas maravilhosas palavras: "Vinde
a mim... e eu vos aliviarei" (Mateus 11:28). Nenhum desgosto,
amargura, invectivas nem palavras duras ou ofensivas poderemos achar jamais
neste gracioso Salvador que desceu a este mundo frio e sem coração, para
manifestar o perfeito amor de Deus e prosseguir sua trilha de serviço apesar de
todo o ódio dos homens. Mas o mais excelente, o melhor dos homens, quando
medido com a vara perfeita da vida de Cristo, não lhe chega nem à sombra. A luz
de Sua glória moral põe de manifesto os defeitos e as imperfeições do mais
perfeito dos filhos dos homens, "para que em tudo tenha a
preeminência" (Colossenses 1:18). Enquanto à paciente submissão que
foi chamado a suportar, Ele sobressai em vívido contraste com um Jó ou um
Jeremias. Jó sucumbiu sob o peso das provas pelas que teve que passar. Não só
deixou escapar um torrente de amargas invectivas contra os seus semelhantes,
mas até amaldiçoou o dia do seu nascimento. "Depois disto, abriu Jó a
sua boca, e amaldiçoou o seu dia. E Jó, falando, disse: Pereça o dia em que
nasci, e a noite em que se disse: Foi concebido um homem!" (3:1-3). Achamos
algo idêntico no caso de Jeremias, esse bem-aventurado varão de Deus. Ele
também, não podendo resistir à pressão das diferentes provações que iam
acumulando-se, deu lugar aos seus sentimentos com estas amargas palavras: "Maldito
o dia em que nasci: o dia em que minha mãe me deu à luz não seja bendito.
Maldito o homem que deu as novas a meu pai, dizendo: Nasceu-te um filho;
alegrando-o com isso, grandemente. E seja esse homem como as cidades que o
Senhor destruiu, sem que se arrependesse: e ouça clamor pela manhã, e ao tempo
do meio-dia um alarido. Por que não me matou desde a madre? ou minha mãe não
foi minha sepultura? ou não ficou grávida perpetuamente? Por que saí da madre,
para ver trabalho e tristeza, e para que se consumam os meus dias na
confusão?" (Jeremias 20:14-18). Que linguagem! Só pensa em amaldiçoar
o homem que traz as novas do seu nascimento! E o amaldiçoa porque não o matou
no ventre! Tudo isto, tanto no que refere-se ao patriarca quanto ao profeta,
encontra-se em agudo contraste com o manso e humilde Jesus de Nazaré. Ele, o
Salvador imaculado, sofreu provas muito mais numerosas e terríveis do que todos
os seus servidores juntos. Porém, jamais um só murmúrio brotou dos seus lábios.
Tudo suportou com paciência e afrontou a hora mais sombria com estas palavras: "Não
beberei eu o cálice que o Pai me deu?" (João 18:11) bendito Senhor,
Filho do Pai, quão digno és da nossa adoração! Nos prostramos aos teus pés,
sumidos em adoração, amor e louvores, te reconhecendo como Senhor de todo! "Escolhido
entre dez mil, e totalmente desejável" (Cantares 5:10,16). A história
dos caminhos de Deus com as almas que nos apresenta este livro constitui o
campo mais fértil para o nosso estudo; a mais interessante história, sumamente
instrutiva e proveitosa. O principal e grande objetivo destes desígnios de Deus
com as almas pe o de produzir uma verdadeira contrição e humilhação de
espírito; apartar de nós toda falsa justiça; fazer com que nos despojemos de
toda confiança em nós mandamentos e ensinar-nos a buscar em Cristo o nosso
único amparo. Todos têm que passar através do que poderia denominar-se de
"processo de despojamento e esvaziado de um mesmo". Uns experimentam
este processo antes de sua conversão ou novo nascimento; outros, depois. Alguns
são trazidos a Cristo passando por terríveis experiências e penosos exercícios
de coração e de consciência, exercícios que podem durar anos e, a vezes, toda a
vida. Outros, em cambio, obtêm esta mesma graça através de exercícios de alma
relativamente simples. Estes últimos se apropriam de imediato das boas novas do
perdão dos pecados que foi possível graças à morte expiatória de Cristo. Seu
coração se enche de gozo em seguida. Mas o despojamento e esvaziamento do eu
vem depois e, em muitos casos, pode sacudir a alma desde suas próprias
fundações e fazê-la duvidar de sua própria salvação. Isto é muito doloroso, mas
absolutamente necessário. Efetivamente, o eu, antes ou depois, deve ser
conhecido e julgado. Se a gente não aprende a conhecê-lo na comunhão com Deus,
acabará fazendo-o através da experiência amarga de alguma queda, "Para
que nenhuma carne se glorie perante Ele" (1 Coríntios 1:29). E todos
nós devemos aprender a conhecer nossa absoluta impotência para todo, a fim de
poder gostar da doçura e o consolo desta verdade: que Cristo "para nós
foi feito, por Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção" (1
Coríntios 1:30). Deus quer vasos vazios. Não esqueçamos. É uma verdade
solene e necessária. "Porque, assim diz o alto e o sublime, que habita
na eternidade, e cujo nome é santo: Num alto e santo lugar habito, e também com
o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos e para
vivificar o coração dos contritos." (Isaias 57:15). Também lemos: "Assim
diz o Senhor: O Céu é o meu trono, e a terra o escabelo dos meus pés: que casa
me edificaríeis vós? e que lugar seria o do meu descanso? Porque a minha mão
fez todas estas coisas, e todas estas coisas foram feitas, diz o Senhor; mas
eis para quem olharei: para o pobre e abatido de espírito, e que treme da minha
palavra." (Isaias 66:1-2). Quão propícias são estas palavras para
todos nós! Um espírito contrito e quebrantado constitui uma das necessidades
mais urgentes de nosso tempo. A maior parte de nossas calamidades e dificuldades
podem serem atribuídas a esta necessidade. Os progressos que realizamos dia a
dia, na vida familiar, na assembléia, no mundo, em toda a nossa vida prática,
quando o eu é subjugado e mortificado, são verdadeiramente admiráveis.
Mil coisas que sem este exercício seriam como uma chama que faz arder nossos
corações, são estimados como nada quando as nossas almas se encontram num
estado verdadeiramente contrito. Podemos então suportar repreensões e insultos;
passar por alto menosprezos e afrontas; pisotear nossos caprichos, predileções
e prejuízos, como assim também ceder ante os outros quando não se vejam
comprometidos princípios fundamentais; estar dispostos a toda boa obra,
manifestar uma agradável amplidão de coração em todas as nossas relações, e ser
menos rígidos em nosso trato com os outros, de maneira de enfeitar a doutrina
de Deus, nosso Salvador. Mas, ai, quão freqüentemente acontece o contrário com
nós! Manifestamos um temperamento relutante, inflexível; combatemos em favor
dos nossos direitos; nos inclinamos para todo o que nos dê algum benefício;
buscamos nossos próprios interesses pessoais; queremos impor nossas próprias
idéias. Tudo isto demonstra claramente que o nosso eu não é ponderado
nem julgado de forma habitual na presença de Deus.
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